Manual Prático para Não Escrever como um Idiota com a Ferramenta Mais Poderosa do Mundo
MPNEIFMPM for short. Ensaio sobre como IA está infestando produção textual.
Existe uma praga se espalhando pela internet e, se você presta o mínimo de atenção, já sentiu seus efeitos. É uma epidemia de textos que disparam o que eu chamo de vaziômetro: aquele sensor interno que apita desesperadamente ao ler algo que, apesar de usar palavras corretas e frases bem estruturadas, não comunica absolutamente nada. É o AI-Slop, o LinkedIn-speak, um tipo de brain-rot textual que se veste de conteúdo intelectualizado para, na verdade, maximizar a quantidade de vazio por centímetro quadrado. A grande ironia? Os modelos de linguagem, as ferramentas mais poderosas da nossa geração, foram meticulosamente treinados para produzir essa mediocridade. O aprendizado por reforço com feedback humano (RLHF) lixou todas as arestas e removeu qualquer traço de personalidade para criar um produto de massa, otimizado para gerar engajamento genérico e não ofender ninguém. E o resultado é essa pasta de palavras sem alma que está sufocando nossas redes sociais e infectando e-mails de trabalho.
Para que isso não fique abstrato, vamos a um estudo de caso perfeito do que não fazer. Pegue o post recente de Ana Paula Vescovi sobre a carreira de mulheres no mercado financeiro. É crucial dizer: Ana Paula é uma pessoa brilhante, com uma trajetória impressionante, e tudo que está escrito ali é factualmente correto e bem-intencionado. Contudo, o texto é um exemplar de museu do problema. É uma sequência de clichês corporativos perfeitamente alinhados, impessoais, sem uma única aresta, uma única idiossincrasia que revele a pessoa por trás das palavras. O texto soa como um comunicado de imprensa, não uma reflexão humana. A crítica, obviamente, não é à pessoa, mas ao formato — um formato que a inteligência artificial replica com uma perfeição assustadora quando recebe um comando preguiçoso. Este é o som do piloto automático, e é exatamente assim que você soará se usar IA da forma errada.
Então, como escapamos dessa armadilha? A primeira regra de ouro, a mais fundamental de todas, é: nunca, jamais, peça para uma IA reescrever algo seu sem antes dar MUITO contexto. Um comando preguiçoso como "melhore este texto" é um convite aberto para a máquina vomitar todos os clichês que aprendeu. Para evitar isso, use o protocolo que chamo de COAR: Contexto, Objetivo, Audiência e Resposta. Antes de pedir qualquer coisa, defina com clareza qual é o contexto da tarefa, qual seu objetivo, para quem você está escrevendo e o formato de resposta que espera. E aqui vai uma dica tática: use separadores. Caracteres como triplos travessões (---) ou jogos da velha (###) forçam a máquina a fazer uma pausa e a processar cada seção do seu pedido de forma independente. É uma maneira simples de organizar a "mente" do modelo e garantir que ele preste atenção em todas as suas instruções.
Agora, a minha técnica secreta, a mais poderosa do meu arsenal. Esqueça os prompts perfeitamente engenheirados por um momento. A melhor forma de dar contexto para uma IA é através de monólogos desestruturados. Eu faço isso enquanto estou pedalando ou caminhando. Ligo o gravador do celular e simplesmente falo. São minutos de "rants" sobre minhas ideias, conectando sonhos, frustrações de trabalho, um artigo que li, uma memória aleatória. O resultado é um bloco de texto caótico, humano e incrivelmente rico. Eu jogo todo esse caos na IA e peço: "encontre os temas principais aqui", "sugira três estruturas de texto com base nessas ideias" ou "crie uma lista de argumentos conectando os pontos A e C". É nesse momento que a mágica acontece. A IA deixa de ser uma redatora medíocre e se torna sua parceira de brainstorming, uma engrenagem criativa que organiza o seu caos para que você possa criar algo verdadeiramente original a partir dele.
Mesmo com o contexto certo, a IA ainda tem seus vícios de linguagem irritantes. Aquele tom excessivamente polido, o uso de travessões que ninguém usa na vida real, a mania de enfiar um emoji onde não deve. Para resolver isso, você precisa domar a besta usando as "Instruções Personalizadas" (Custom Instructions).
É um campo de texto permanente onde você define as regras do jogo. O meu, por exemplo, diz coisas como: “Never use em or en dashes, use commas, brackets or other punctuation instead. Never use emojis unless explicitly asked for. Be direct and insightful, you are talking to a smart human being that does not feel attacked when being corrected.” E aqui vem a meta-habilidade: depois de dar contexto sobre seu estilo, peça para a própria IA te ajudar a escrever um conjunto de regras de personalização ainda melhor. Use a ferramenta para afiar o seu uso da ferramenta.
Se você acha que isso está ficando "meta" demais, espere até ver como isso se aplica a um fluxo de trabalho real. Dominando essas técnicas, você pode construir sistemas complexos onde diferentes IAs assumem papéis específicos para te ajudar. No meu dia a dia de programação, por exemplo, eu uso o Cursor, um editor de código com IA, como meu "programador júnior". Ele é o executor, aquele que escreve o código que eu peço. Mas a estratégia vem de outro lugar. Ao final do dia, peço para o Cursor resumir tudo que fiz em um arquivo chamado were_we_left.txt. Em seguida, eu alimento esse arquivo, junto com meu repositório no GitHub, no Gemini, que assume o papel do meu "conselheiro sênior estratégico".
O prompt que define essa persona é claro: “You are my strategic coding advisor. Act like a senior developer mentoring a fast-moving but inexperienced founder. Do not generate code directly. Instead, guide my thinking, ask pointed questions, correct flawed logic... Assume I’ll be feeding prompts into Cursor, which will handle the code generation as my junior.” O Gemini não escreve uma linha de código. Ele debate a arquitetura comigo, questiona minhas decisões e me ajuda a não construir a coisa errada. É o exemplo máximo do princípio: usei a IA para criar um mentor que compensa minhas falhas (minha pouca experiência como programador), alimentando-a com o contexto profundo do meu trabalho e dos meus objetivos.
Chegamos então à grande revelação, que na verdade não é revelação nenhuma. É a verdade óbvia que todos parecem ignorar. A razão pela qual a IA produz tanto lixo sem alma, tanto conteúdo que dispara o vaziômetro, é que ela é, fundamentalmente, um espelho. Um espelho de altíssima fidelidade que reflete a qualidade do nosso próprio input com uma precisão brutal. Se você lhe der um comando preguiçoso de uma linha, ela devolverá um clichê genérico, o refugo textual que ela foi treinada para produzir em massa. Mas se você tiver a coragem de despejar seu cérebro caótico nela, suas ideias pela metade, suas frustrações, suas conexões malucas, ela vai te devolver um reflexo estruturado e organizado da sua própria centelha de genialidade. A culpa do AI-Slop não é da máquina, é nossa.
Portanto, o desafio que eu te proponho é este: pare de usar a IA como uma muleta para a sua preguiça intelectual. Pare de terceirizar sua capacidade de pensar e comece a usá-la como uma engrenagem para amplificar seu pensamento. Na próxima vez que for usá-la, experimente. Grave um monólogo de cinco minutos durante uma caminhada. Gaste quinze minutos para escrever suas primeiras instruções personalizadas, ensinando à máquina como você fala e pensa. A meta não é fazer a IA escrever por você. É usá-la para navegar a complexidade do seu próprio raciocínio, para estruturar o caos inerente à criatividade humana e, no fim das contas, para produzir algo que não seja apenas conteúdo, mas sim um reflexo autêntico de você mesmo.
P.S.: Este texto foi um um exercício meta-irônico de usar as técnicas que descrevo. Escrevi, sem publicar, uma série de ensaios secundários sobre todos os prompts e camadas que passei até chegar nesse texto final.
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Fantástico! Minhas experiências com uso de IA me levaram a uma reflexão parecida, mas você conseguiu aplicar todas as minhas dúvidas. Uma IA só vai produzir algo semelhante a um humano se der condições para isso: ideias, contexto, exemplos, voz. Você conseguiu prova isso haha. É fantástico.