Sabe aquela sensação de acordar e não entender como você está ali? Como se tivesse acordado de um longo sonho ou como se estivesse sentindo coisas pela primeira vez em meses? De olhar para um passado recente e não compreender exatamente por que você fez o que fez, mas ter completa certeza de que fazia todo sentido na hora. Fazia sentido, não necessariamente era algo que você queria, mas simplesmente fazia sentido tomar aquela decisão naquele momento. Também não estou falando sobre fazer o certo, por que muitas vezes o mundo não é preto no branco e o que faz sentido não é sempre certo. Ou o que queremos não faz muito sentido, e portanto o deixamos de fazer.
Com 17 anos, tranquei o Insper para ir trabalhar com um amigo do meu pai. Depois de um ano de faculdade, eu achava aquele lugar cheio de playboy fora da real. Não tinha paciência para esperar mais dois anos para poder começar a estagiar. Queria trabalhar muito, ganhar meu dinheiro e fazer minha história. Um amigo do meu pai estava formando uma equipe de vendas. Enxerguei na oportunidade de trabalhar com ele um caminho para me desenvolver e me trilhar meu próprio caminho. Eu gostei muito do que vivi. Conversei com pessoas, trabalhei muito, bati algumas metas, outras nem tanto. Não me dei conta da falta de pontos de apoio que eu tinha e dos sintomas de depressão que vinham se acumulando no último ano. O trabalho intenso me permitia não pensar neles, e quando eu percebi eu já estava fodido**. Mas acima disso, apesar de gostar do ambiente competitivo movido a metas e de uma mentalidade de que o sucesso só depende de você, ao final daqueles três meses eu percebi que eu simplesmente só não conseguia acreditar naquilo. Aquele modelo mental, apesar de eu enxergar como vitorioso, simplesmente não batia com o mundo que eu enxergava. Passei anos sem entender como eu posso pensar tão parecido mas tão diferente daquelas pessoas. Em uma de nossas conversas o amigo do meu pai falou algo que ecoou por anos em minha mente. Reforçando que eu era jovem e brilhante, ele reiterou que eu possuía um assunto mal resolvido que estava me travando.
Na minha cabeça o subtexto mais forte era a questão da sexualidade. É um arquétipo muito comum de jovens mal resolvidos. A nossa geraçãozinha woke cresceu ouvindo inúmeras histórias de que a força sempre estava dentro de você e bastava você se aceitar para encontrar sua força. As histórias merda, no caso (Estou falando de você, Capitã Marvel.) Os indícios estavam presentes: Eu nunca havia tido um relacionamento com uma mulher, eu entrava no estereótipo de nerd que jogava videogame o dia inteiro e mostrava pouco interesse em sair com mulheres, eu havia ficado uma vez com um rapaz em uma festa e gostado. Eu sempre fui um homem sensível, amável e com pouca necessidade de performar masculinidade. Havia apenas um problema: O meu vagamente controlável e insaciável apetite por mulheres. Desde o episódio em que fiquei com um rapaz aos 16 anos na frente de vários amigos em uma festa, nunca me importei com títulos. Pessoas próximas vieram demonstrar apoio como se eu tivesse saído do armário e eu fiquei confuso. Para mim não foi um ato de afirmação e não teve mais significado do que as outras mulheres que eu havia beijado naquele mesmo dia. BISSEXUALIDADE, era o que todos me diziam quando eu conversava sobre o assunto. Aceitei o título por uns anos, renunciei o título outros anos, mas a minha grande realização depois de começar meu primeiro relacionamento foi de que eu só não me importava com isso. O problema mal resolvido era outro.
Seguindo nossa investigação, um problema extremamente correlacionado era minha relação com Deus. Depois de uma criação extremamente feliz no cristianismo, o ateísmo me foi revelado aos 13 anos e se tornou tão claro quanto a luz do dia. Enquanto tentava dormir, pensava em crianças da minha idade que estavam acordando em outro lugar do mundo. Lembro de ter visto na internet a % de cristãos na Índia (menos de 3%) e pensar “Não é engraçado que as crianças na Índia tem muita pouca chance de acreditarem em Jesus e irem pro céu?” Eu sentia muita empatia por aquelas crianças e vontade de pregar para elas, pois assim como eu, elas só estavam acreditando no que os pais delas ensinaram. A semente da dúvida plantada em minha mente naquela noite encontrou um solo fértil e segue frutificando até hoje. Eu sentia uma mágoa muito grande com um Deus que eu sabia que não existia. Por que aquele Deus, ainda que inexistente, tinha a capacidade de subjugar milhões de pessoas por milênios. E eu, Henrique, não conseguia libertar essas pessoas e me via impotente frente a essa entidade onipotente que sequer existia. Depois de me ajudar a voltar para a faculdade (dessa vez com o foco em fazer amigos), a minha psicóloga percebeu minha melhora e corretamente expressou a minha necessidade de fazer as pazes com Deus. Entretanto, por entender o contexto religioso dela, eu interpretei de forma equivocada e acabei perdendo toda a confiança que eu tinha nela. Criei uma crença limitante de que ela nunca me entenderia e terminei com ela, mesmo estando muito satisfeito com o nosso progresso e sentindo uma gratidão e carinho enorme por ela. Alguns anos depois, identifiquei esse ressentimento, aceitei que as pessoas escolhiam voluntariamente acreditar no senhor dos céus e escolhi fazer as pazes com Deus. Se existe um Deus onipotente, onisciente e com um plano pra minha vida, estava nos planos dele que eu seria ateu durante a juventude, e é uma questão de tempo até que ele abra meus olhos para a verdade. Fudeu. Resolvidos os problemas e a inquietude seguia firme. Talvez o sonho frustrado de nunca ter tentado ser jogador profissional de videogame? Levei mais uns anos e a destruição da minha footprint digital para descobrir, mas também não era isso.
Passei anos sem entender “o que me fazia diferente” e constantemente sendo rotulado e desrotulado. Héteros me explicando que eu era bissexual, bissexuais me explicando que eu era hétero, gays me convencendo que eu era gay. Narcisismo, autismo, superdotação, borderline, tdah, bipolaridade, já tive conversas sérias sobre cada um desses temas, em maior parte me defendendo desses rótulos (mas enxergando as acusações como extremamente críveis e razoáveis). Seria mais fácil se todos vocês concordassem no diagnóstico, e eu o aceitaria de braços abertos.
Já estudei o DSM-5 de cabo a rabo e dei uma lida na literatura relevante: spoiler, não é nada relevante. Os rótulos existem por que eles ajudam as pessoas que sentem coisas parecidas, eles são ferramentas que facilitam a nossa transmissão de informação, mas não devem ser um fim em si mesmo. Entender isso me deu muita paz para comprar protetores de ouvidos poderosos (inclusive ir em shows com eles!) sem gastar energia mental para me importar se eu era ou não autista. (Uma das noites mais engraçadas da minha vida foi eu colocar minha mãe pra fazer o aspie quiz sobre mim sem contar pra ela o que era, 60% das perguntas ela respondia algo do tipo “nossa você era muito assim pequeno!! Mas melhorou quando cresceu.” outros 30% “hahahaha muito você isso!!”)
Depois de assistir Crazy, Stupid, Love pela milésima vez eu encontrei uma explicação plausível sobre a fonte da minha frustração pessoal e a minha falta de compreensão e coerência nas minhas próprias decisões ao longo do tempo. Eu sempre fui muito confortável em ser duas coisas ao mesmo tempo, quebrar as regras e lidar com um mundo incerto. Através da lógica, rompi com o meu modelo de mundo mental em que o monoteísmo cristão preenchia todas as lacunas. Abracei a curiosidade como motor do conhecimento e a dúvida como mandamento. Porém alguns passos a frente, também enxerguei através da lógica possibilidade de viver em um mundo determinístico, em que inexiste o livre arbítrio.
A explicação é simples e facilmente compreendida por indução. Você nasce sem consciência alguma. Todos os seus estímulos estão programados em suas células. Os médicos colocam o dedo para você apertar e fazem cócegas na sua bundinha para testar seus reflexos. Nesse cenário completamente controlado, fica evidente que todas as suas decisões são explicadas exclusivamente por uma combinação da sua genética e pelos estímulos externos. Esses estímulos são computados na sua cabeça, e avançamos mais alguns segundos. As suas próximas reações são uma combinação da sua genética, dos estímulos e do que aconteceu no instante anterior. Se você estender essa lógica para toda sua vida, fica evidente a inexistência de livre arbítrio e de que o humano é forçado a tomar a melhor decisão que ele enxerga.
Eu vou chamar essas duas visões de mundo de dois lobos que existem dentro de mim. Acredito que a maior parte das pessoas, ainda que não pense no assunto, conseguem navegar consistentemente em uma dessas visões de mundo. Acreditando no livre arbítrio e em um mundo probabilístico em que elas estão o tempo todo tentando tomar a melhor decisão utilizando a melhor informação disponível. Ou acreditando em um mundo menos probabilístico, em que as coisas acontecem por uma ordem maior, em que os astros, deuses até por conta exclusivamente deles: nesse caso, o segredo está mais em seguir bons princípios e se manter fiel a eles ainda que eles não pareçam a melhor decisão.
Existem trade-offs claros entre essas visões de mundo. O mundo precisa de pessoas com essas duas visões cooperando. O nosso cérebro consegue ver um número de possibilidades finito e limitado das consequências das nossas decisões. Por conta disso, a visão de mundo determinística também é um recurso para otimizar a trajetória para o longo prazo. Como em uma conversa com um professor, em que eu cogitava seguir na academia. “Para fazer doutorado e ter filhos, o segredo é não fazer muita conta.” Ele estava me advertindo que utilizar meu modelo de mundo probabilístico para essa tomada de decisão pode me fazer cometer um erro. Como em casamento, em que as pessoas sabem que tem chance >50% de divórcio mas continuam casando acreditando que esse mundo probabilístico não se aplica a elas naquele momento (e por favor continuem assim, amo casamentos). Para fundar uma empresa, é necessário ignorar que 80% delas quebram em menos de 5 anos.
Eu acabei de assistir um dos meus filmes favoritos, Crazy, Stupid, Love. Além de ser talvez a maior obra de comédia romântica e rapidamente se tornar um filme de época por retratar um mundo pré-smartphones, o filme dialoga muito com essas duas formas de pensar. Através do amor, os personagens são constantemente confrontados com surpresas não tão surpreendentes para o observador externo. Jovens adultos se decepcionando com os parceiros, casais se encontrando em um relacionamento frio e frustrado que culmina em uma traição e pedido de divórcio. Um primeiro amor não correspondido.
A mensagem óbvia do filme é que o amor vale a pena, mas a sátira do filme é justamente interpolar uma sequência de histórias e arcos óbvios de uma forma altamente improvável em um mundo probabilístico. O espectador, assim como os personagens, é confrontado com a própria capacidade de analisar a situação de forma empática e de forma holística simultaneamente.
A presença de múltiplos personagens protagonistas com importância equivalente remove o elemento de obviedade da trama, e força o espectador a tomar partido. Há uma sobrecarga, em que você não tem tempo suficiente para decidir julgar os personagens ou inferir qual será a trajetória deles. Os próprios personagens se veem constantemente confrontados com aceitar a realidade e as consequências dos eventos que eles viveram ou tomar decisões irrazoáveis em um mundo probabilístico mas que fazem todo sentido se você está acreditando em uma ordem maior (como amor ou almas gêmeas).
Acredito que muitas vezes tomei decisões grandes com um olhar probabilístico. Escolhi a melhor decisão muitas vezes pensar ou se importar com o que eu queria. O problema nunca foi que nessa visão geralmente me faz tomar riscos, mas a minha incapacidade de me manter nessa visão em momentos de stress acentuado. A minha fragilidade emocional se concretiza com a minha visão determinística de mundo tomando conta e rejeitando todas as minhas escolhas do passado. A nova administração acha tudo inadmissível. As desistências se tornam covardia, os riscos se tornam estupidez. As decisões começam a partir de um ponto de vista determinístico em que tudo só depende de mim. As inferências sobre o passado se tornam todas autoregressivas (As decisões boas são as que deram certo e as decisões ruins são as que deram errado). Até que alguns meses depois, quando as coisas começam a dar errado, eu acordo com o mundo virado de ponta cabeça e uma confusão mental ensurdecedora por estar pensando probabilisticamente novamente. Meu veredito: eu deveria seguir o conselho do meu pai e só pensar um pouco menos.
*Depois de pedir demissão e compartilhar com a família alguns sintomas severos de depressão a intervenção foi imediata (pela qual sou eternamente grato). Meus pais alugaram um airbnb e se mudaram para São Paulo na semana seguinte. Comecei a fazer terapia e passei os próximos três meses decidindo entre voltar para o Insper, tentar ser jogador de lol ou abrir uma nova aventura.
**Fui em um endócrino, que me perguntou há quanto tempo eu não saía com amigos. Eu não lembrava a resposta, era acima de 60 dias por que eu só tinha amigos próximos em Curitiba, cidade para a qual eu não conseguia viajar pois trabalhava de segunda a domingo.
Referências
On the Edge - Nate Silver (livro)
Triple Tragedy And Thankful Theory - by Scott Alexander (astralcodexten.com)
Aguardando ansiosamente os próximos capítulos dessa história, de uma grande aventura chamada vida 😘